Você já deve estar acostumado a escutar que quadrinhos são apenas para crianças e jovens, que é apenas uma fase de leitura. É partindo justamente desta mentalidade que os quadrinhos são menosprezados e constantemente considerados de menor importância. Quase como se quadrinhos e livros para crianças também não tenham seu valor literário.
Contudo, este cenário já vem mudando há muito tempo. E há um quadrinho que não apenas mostrou que é possível debater política nesta arte, mas fazer dos quadrinhos um manifesto político.
Palestina de Joe Sacco é um marco. Para os quadrinhos ela significou a autoafirmação de um gênero, sendo o jornalismo em quadrinhos. Mas para mim sua principal importância é de mostrar aos leitores e à sociedade de uma forma geral que a arte sequencial pode muito bem expressar um posicionamento político e social sobre questões atuais, utilizando da imagem e da escrita que muitos ainda consideram apenas para crianças.
O tema da obra de Sacco já está claro no título, trata-se da Palestina. Produzido na primeira metade da década de 1990, o quadrinho Palestina lida com a situação atual que os palestinos vivem, em seus campos de refugiados e no exílio, convivendo com a violência, a tortura, o preconceito e a exclusão. Apesar de escrito e desenhado a mais de 20 anos, ainda trata de um tema atual, delicado e importante para nosso contexto de globalização.
O motivo da importância deste tema está já nas primeiras páginas do quadrinho. Sacco aponta como que a grande mídia, essas dos âncoras dos noticiários e matérias de grandes jornais, não contam a história dos palestinos e da Palestina, e sim, apenas de Israel e dos judeus. Portanto, a guerra e a violência interrupta desde 1948 – quando os judeus, partindo da declaração da ONU, estabeleceram seu país na região da Palestina, no Oriente Médio, expulsando e desabrigando milhões de palestinos que lá viviam – é uma guerra não apenas militar, como discursiva.
Com isso eu quero dizer que não é apenas da coerção física, da violência e da autoridade que se faz esse genocídio promovido pelo Estado de Israel contra os palestinos. E sim da forma que se apresenta, que se conta, noticia e informa a natureza desta guerra, que, antes de tudo, é assimétrica. Isso muito por conta dessa grande mídia que Sacco crítica no início de sua obra. Com ela, a balança pende sempre para Israel. E os palestinos e a Palestina são esquecidos nesse mundo de intenso tráfego de informações. Sabe-se o nome dos judeus, seus rostos, sua história, mas nada se sabe do povo palestino.
Partindo deste ponto é que Sacco começa a se manifestar. É aí que sua vontade de viajar até a Palestina, conhecer seu povo, pesquisar, conversar, dialogar com eles, inicia-se. Produz, após uma intensa e extensa pesquisa de campo, um quadrinho sobre esse povo expulso de sua terra, excluído de seus direitos e de seu espaço de voz, pois ficaram a mercê dos carrascos da grande mídia e da história produzida e contata pelos judeus sionistas, não podendo falar nem por si.
A história e os discursos que os judeus sionistas constroem desde o século XIX tratam de negar a existência dos palestinos, de sua realidade e de sua terra. Ou seja, lá não se chama e nunca se chamou Palestina e muito menos é habitada por algum povo. Claro que muito disso parte do preconceito dos europeus e dos judeus colonizadores com o Oriente Médio, com os árabes e o islamismo, pois os viam como povos “incivilizados”. Não bastando, vendemos-se como superiores, acreditavam serem capazes de falar por estes povos “bárbaros”. Portanto, a interpretação dos judeus sionistas sobre a realidade dos árabes palestinos era preconceituosa.
“Para mitigar a presença de inúmeros nativos numa terra cobiçada, os sionistas se convenceram de que eles não existiam e, em seguida, admitiram que existiam apenas de maneira rarefeita. Primeiro negação, depois obstrução, diminuição, silenciamento, confinamento” (p. 22).
E aqui brilha o que há de mais fortes no quadrinho de Sacco, começando pelo título. A escolha de dar o nome de Palestina ao seu quadrinho não está apenas na referência óbvia ao que a história vai contar, e sim para afirmar prontamente sua posição diante desta questão. A Palestina existe, sim, que os palestinos vivem, tem seus valores, costumes, desejos e sonhos. 7
Que os palestinos existem e tem sua própria cultura.
Joe Sacco, com seu quadrinho, manifestou-se a favor da causa Palestina e agiu de forma até rebelde, pois subverteu a realidade e a ordem predominante. Pois, hoje poucos ainda falam da Palestina, e quando falam do “conflito” palestino-judeu, falam do lado de Israel. Não bastando, a mesma violência, preconceito, expulsão e exclusão que os palestinos sofrem, é corroborado e apoiado por países europeus e pelos Estados Unidos, fazendo com que o preconceito e a negação deste povo seja o valor estabelecido mundialmente. Portanto, o mundo ocidental consente o que Israel se propôs a fazer.
E nada mais subversivo do que narrar a história dos palestinos, um povo dito como inexistente. E quando existente, é apenas como um conto de fadas aos olhos ocidentais.
É sabendo de todo este contexto, que Sacco esclarece claramente em seu quadrinho, que podemos ver que não há nada mais icônico e significativo do que contar a história dos palestinos e da Palestina utilizando não os jornais e a grande mídia, mas outra. Uma mídia das massas e de amplo alcance que são os quadrinhos.
Utilizando da arte sequencial para explicar a situação da Palestina e seu posicionamento diante dela, revelar e expor a violência generalizada e o controle em que os palestinos estão à mercê e contar a história de um povo “inexistente” é o que faz da Palestina de Joe Sacco um manifesto. E assim podemos compreender como um quadrinho tem sim uma importância política.
Texto: Matheus Vaz @quadrinhopopular
Gostou do nosso conteúdo? Que tal apoiar o Yellow Talk? O Yellow também é podcast, e seu apoio pode ajudar o nosso trabalho a crescer cada vez mais. A partir de R$2,00 você já vai estar contribuindo para manutenção do nosso programa. Para dar o seu apoio, basta clicar AQUI.
Comentarios